Longe de criar essencialismos
transcendentais na obra desse diretor (que possuí problemas tanto ideológicos e
pessoais como cinematográficos), gostaria simplesmente de realizar um exercício
de reflexão com esse filme que considero belíssimo. A Rosa Púrpura do Cairo (The
purple rose of Cairo, 1985) é uma tragicomédia lançada em 1985, dirigida
por Woody Allen e estrelada por Mia Farrow (então parceira amorosa desse
diretor) e Jeff Daniels. Assim, nesse breve texto somente quero postular
algumas ideias que nasceram da minha experiência, sem nenhuma ambição de
encerrar ou esgotar o seu significado – isso também não significa que vou me posicionar em relação
às polêmicas que envolvem esse diretor, pois tal como pretendo demonstrar, o
que esse filme coloca em questão é a própria autonomia e a co-criação da obra
de arte.
A trama se desenrola com a confusão gerada pela saída de Tom Baxter
das telas, acarretando em problemas para indústria cinematográfica, o que
envolve os diretores, os produtores, os atores e os próprios personagens do
filme que possuem personalidades e opiniões. Nessa confusão, Cecília e Tom
Baxter começam a se relacionar, um caso amoroso inesperado entre um ser
ficcional e uma mulher de carne e osso. Contudo, a impossibilidade dessa
relação aparece em coisas pequenas através do conflito entre o real e o
imaginário.
A medida que o filme se desenvolve, observamos que essas categorias
não são tão evidentes quanto parecem. Real e imaginário estão sobrepostos,
nenhum possuí autonomia em relação ao outro. Essas tensões vão se desdobrando a
partir da relação dos dois apaixonados, das conversas entre os personagens
dentro da tela e os espectadores, das decisões levadas à cabo pela indústria
cinematográfica e das crises que envolvem sentimentos genuínos por questões
imaginárias.
Posto que o real e o imaginário estão sobrepostos, percebemos que se
trata de um filme em que os personagens fictícios assistem um filme que contém
outros personagens fictícios. Ou seja, há um processo metalinguístico, o filme
se refere a ele mesmo, dialoga com outras obras e com o próprio fazer
cinematográfico. Em consequência disso, a “quarta parede” é constantemente
rompida com sentenças que dialogam diretamente com o espectador, principalmente
através dos monólogos do personagem comunista –
sendo que aqui há um paradoxo, pois quem solta essas frases são os personagens
de dentro do filme, assim, o filme dentro filme nos comunica ideias.
Esse paradoxo é extremamente interessante porque coloca algo que nunca
é falado diretamente: uma obra não existe individualmente, existem diversas
sobreposições de outras obras anteriores, de tempos históricos, de ideias
conflitantes e, principalmente, de tensões culturais que se referem tanto ao
momento de concepção como ao passado. A figura do artista e do criador são
redimensionadas, colocando-os como montadores ou performers, influenciáveis e
influenciadores. Portanto, constitui-se um jogo de mão de dupla, o artista cria
tanto quanto o público, ambos dotam tais produções de sentido através das suas
experiências.
Além disso, quando observamos o amor de Cecília e Tom Baxter, duas
questões polêmicas estão em pauta. Por um lado, constata-se que o próprio
sentimento do amor é algo imaginário, ou seja, apaixonamo-nos por ideias. Por
outro, podemos nos apaixonar pelas obras de artes, pois muitas vezes elas nos
oferecem mais razões e motivos para viver do que o cotidiano. Sendo que esse
último, por sua vez, pode ser miserável e solitário, a imaginação possibilita
novas formas de sentir e experimentar a vida.
Ao meu ver A Rosa Púrpura do
Cairo coloca reflexões intensas sobre o real, o imaginário, o amor e a
arte. Sendo que os seus maiores méritos são os demonstrar 1) como o real e o
imaginário são categorias que se interpõem e não existem por si mesmas, 2)
inexistência de algo como um fazer genial, pois diversas obras estão em
questão, assim, o artista não é um ser individual, mas essencialmente coletivo
e 3) a interdependência da obra de arte com o seu público, pois os espectadores
influenciam e criam significados tanto quanto os autores.
O terceiro ponto possuí uma consequência direta: não existe uma
hierárquica artística, pois o filme dentro filme, A Rosa Púrpura do Cairo, é uma comédia simples, plana, sem grandes
horizontes artísticos além do mero ideal de entreter um público infeliz em um
contexto triste e de faturar dinheiro com a bilheteria. Contudo, isso não
impede que ela possa oferecer uma certa “transcendência” para alguém. Nesse
sentido, uma cena muito curiosa é quanto a Cecília entra no filme junto com Tom
Baxter e vivência todo o enredo ao lado de seu amado. Em outras palavras, ela
recriou o filme de acordo com as suas experiências, ela vivenciou e
redimensionou a obra inserindo a sua presença.
Apesar de todo esse plano reflexivo e simbólico, ainda existem
questões mais materiais. Por exemplo, a personagem de Mia Farrow explode e
decide se tornar dona do seu próprio destino, enquanto os personagens
masculinos como seu marido Monk (Danny Aiello) e posteriormente o ator Gil Shepherd (que dentro da
trama interpreta o arqueólogo Tom Baxter) podem ser reduzidos à meros
enganadores, interesseiros e mentirosos. Apesar do tom divertido do filme, tudo
acaba em tragédia, com Cecília sozinha e desiludida, e os personagens
masculinos, mesmo que tenham conseguido o que queriam, não se sentem felizes. No
final, os representantes da indústria cinematográfica foram os únicos que
saíram contentes, pois continuaram lucrando com o filme.
A película não
acaba de maneira otimista. As reflexões colocadas em pauta não se encerram em
um único horizonte, pois podem tanto levar ora à autonomia do público, ora ao
controle dessa produção pela indústria que visa unicamente o lucro. Tanto que
quando Cecília volta ao mundo real – abandonando Tom Baxter no filme
porque estava convencida de que Gil Shepherd a amava – o que
ela encontra é somente a desilusão e a decepção. O ator nunca a amou, pois,
influenciado pelo time executivo do filme, ele somente queria que o seu
personagem voltasse ao filme para, assim, os produtores continuarem lucrando. Dessa
maneira, a autonomia do público criador foi encerrada pela ação da indústria.
Então, nem tudo
é relativo e autônomo. A indústria pode produzir “protocolos” que confinam a
participação do público à um lugar restrito em prol do lucro e de certos
interesses ideológicos. Portanto, ao meu ver, a palavra que marca o filme é
“tensão”. Tensão entre mercado e criação, tensão entre o real e o imaginário,
tensão entre a obra e os seus predecessores, tensão entre o artista e o
público. Por fim, o que resta não é um juízo de valor moralizante, mas sim a
sobreposição de todos os componentes e o conflito de interesses, tal qual a
produção cinematográfica que existe através da montagem e do empilhamento de
ideais.